Será que podemos ouvir a voz de Deus? Ao vermos exemplos de comunicação tão íntima com o Senhor na vida dos santos, pensamos se Ele se rebaixaria para conversar com pecadores como nós. A resposta é sim! O amor de Deus nos constrange e está acima de qualquer entendimento humano. Ok, já que podemos ouvir a voz do Senhor, como saber se é Ele mesmo falando comigo? Vamos meditar sobre isso a seguir.
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Deus não se manifesta como eu quero
João Batista havia reconhecido Jesus como o messias, mas se inquietou quando o Senhor não declarou abertamente ser o Filho de Deus. Mesmo estando na prisão, João mandou alguns discípulos perguntar ao Mestre: “És Tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” (Mt 11, 3). Jesus responde falando sobre as obras que realiza (obras que as Escrituras já haviam anunciado ser sinais do messias e Seu Reino) e finaliza dizendo: “E feliz de quem não se escandaliza a meu respeito!” (Mt 11,6).
Quantas vezes você e eu não somos como João Batista neste episódio? Aqui, podemos reconhecer a situação do homem que, de maneira semelhante a João, pensa que não ouve Deus na oração. É então que Jesus nos convida a mudar a nossa perspectiva, abandonando a busca de certezas humanas, e entrando nesse jogo misterioso de que o Senhor fala através das Suas obras e das Sagradas Escrituras. Nessas palavras finais – “feliz de quem não se escandaliza a meu respeito” – descobrimos uma chamada a perseverar com fé na oração, mesmo que às vezes Deus não nos responda como esperamos.
Deus deseja estar próximo de nós e fala conosco, mas é importante entendermos que existe um caminho a ser percorrido para se chegar a uma íntima escuta do Senhor. Também é importante dizer que não se trata de uma fórmula rígida e engessada, pois escutar a Deus não é uma matéria uniforme (a vida dos santos nos prova isso).
O Senhor nos fez únicos e nos ama com um amor individual e particular. Naturalmente, Ele nos fala de forma individual, usando a linguagem que estamos acostumados, num idioma que compreendemos.
Da mesma maneira que entre duas pessoas uma troca de olhares pode ser um diálogo silencioso – há olhares que falam –, a conversa confiada do homem com Deus também pode assumir esta forma: a de “um olhar para Deus e sentirmo-nos olhados por Ele. Como aquele olhar de Jesus a João, que decidiu para sempre o rumo da vida do discípulo”(São Josemaria Escrivá). O Catecismo diz que “a contemplação é um olhar de fé” (parágrafo 2715) e, muitas vezes, um olhar pode ser mais valioso e mais carregado de conteúdo, amor e luz para as nossas vidas do que uma longa sucessão de palavras. São Josemaria, precisamente falando da alegria que uma vida contemplativa gera, afirmava que “a alma rompe outra vez a cantar com um cântico novo, porque se sente e se sabe também fitada amorosamente por Deus, em todos os momentos”. Sentir esse olhar, e não apenas saber-se olhados, é um dom que podemos implorar humildemente, como “mendigos de Deus”.
4 dicas (que não são regras fixas) para ouvir a Deus
Busque Deus. Mesmo que pareça óbvio, muita gente pensa em procurar Deus, mas na verdade está procurando somente uma realização pessoal, a solução de seus problemas ou outra coisa para si. Em primeiro lugar, entenda que devemos buscar a Deus por aquilo que ele é, mesmo que não entendamos o a Sua grandeza. Separe um tempo para estar só com Ele, sem celular, música, leitura, pessoas, ou qualquer outra coisa que tire sua atenção. “Quando rezar, entre no seu quarto, feche a porta e reze ao seu Pai” (Mt 6,6). Claro, você pode estar no seu quarto, caminhando pela natureza, mas o melhor lugar para falar com Deus e ouvi-lO é diante do Santíssimo.
Fale com Deus. Muita gente sofre com os pensamentos acelerados que povoam a sua mente agitada. Durante a oração, parece que a situação piora e o resultado é uma oração distraída. Para os que se distraem facilmente, a dica é começar falando para Deus tudo o que está no coração. Use esses minutos iniciais limpando a mente e depositando tudo aos pés dos Senhor, seja o cansaço do trabalho, as questões familiares, financeiras, e, após isso, silencie um pouco.
A ânsia de ouvir, atrapalha. O desejo de ouvir muitas vezes transforma-se numa busca ansiosa, como a de quem espera uma resposta de Deus porque “Ele precisa me falar algo”. Essa expectativa exagerada gera uma tensão que não colabora para que o nosso coração seja tocado pelo coração de Deus. Para estar com Ele, é preciso que haja liberdade, sem obrigações ou cobranças. Nunca cobre Deus para que Ele fale e também não se cobre na oração, mas esteja livremente junto d’Ele, buscando o Seu amor.
Busque o silêncio. Temos enorme dificuldade de dialogar porque não aprendemos a ouvir em nossas relações humanas. Em um mundo cada vez mais acelerado, a sociedade nos ensina a querer respostas rápidas. Nessa agitação, não deixamos as pessoas falarem, antecipamo-nos à fala do outro, queremos adivinhar o que vai dizer. Do mesmo jeito que agimos com as pessoas, na agitação, transferimos para a nossa relação com Deus. Após um momento de oração, de dizer tudo o que quer a Deus, é importante dar tempo para que Ele fale, é necessário silenciar no ambiente e em nosso coração. O princípio de uma boa escuta é dar tempo para o outro falar.
Foi mesmo Deus que falou comigo?
É preciso ter discernimento para separar o que vem de Deus, do que vem da nossa carne e daquilo que é armadilha do demônio. O Senhor nunca se contradiz, então, se o que ouvirmos for contra alguma lei que Ele já instituiu, contra o amor ao próximo ou contra a Igreja, já é fácil descartar como algo que não veio d’Ele.
Para que não caiamos na confusão, precisamos ser instruídos. São Paulo, instruído pelo Espírito Santo de Deus, nos ensina em ICor 2,12-16 o seguinte:
“Ora, nós não recebemos o espírito do mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus, que nos dá a conhecer as graças que Deus nos prodigalizou e que pregamos numa linguagem que nos foi ensinada não pela sabedoria humana, mas pelo Espírito, que exprime as coisas espirituais em termos espirituais. Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem as pode compreender, porque é pelo Espírito que se devem ponderar. O homem espiritual, ao contrário, julga todas as coisas e não é julgado por ninguém. Por que quem conheceu o pensamento do Senhor, se abalançará a instruí-lo? Nós, porém, temos o pensamento de Cristo.”
É por este dom do discernimento dos espíritos que entendemos a fonte das inspirações e as acolhemos ou não na nossa vida.
Você e eu precisamos entender que o demônio é mentiroso e capaz dos disfarces mais sedutores e enganadores. Não pense que ele se manifestará em sua vida com rabinho pontudo e chifrinho, não! O demônio é capaz de se esconder por trás das palavras mais doces e das ideologias mais sutis que, aparentemente, pregam o amor. Inclusive, o maligno conhece de cor a Palavra de Deus e a usa para nos enganar. O objetivo do inimigo é nos enganar com suas iscas e para não sermos fisgados precisamos do discernimento dos espíritos.
O mistério da oração
A verdade é que a oração tem muito de mistério, e esse misterioso encontro entre Deus e a pessoa que ora ocorre de várias maneiras. Entretanto, é importante notar que algumas dessas maneiras não são evidentes à primeira vista, totalmente compreensíveis ou facilmente constatáveis. O próprio catecismo da Igreja nos adverte: “Devemos também enfrentar mentalidades ‘deste mundo’ que nos contaminam se não formos vigilantes, por exemplo: a afirmação de que o verdadeiro seria apenas o que é verificado pela razão e pela ciência (rezar, pelo contrário, é um mistério que ultrapassa nossa consciência e o nosso inconsciente)”(parágrafo 2727). Como João Batista, muitas vezes exigimos evidências que nem sempre são possíveis no domínio do sobrenatural.
E se Deus não falar?
Deus não é obrigado a falar sempre, como já foi dito, mas quando Ele fala, não precisa fazer as cordas vocais vibrarem. O lugar onde se escuta o Senhor não é o ouvido, mas o ponto mais recôndito e misterioso do nosso ser, que umas vezes chamamos coração e outras, consciência.
“A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz (GS 16)” (Catecismo da Igreja Católica, 1776).
Deus fala com a realidade que Ele é e fala à realidade que somos, da mesma maneira que as estrelas não se relacionam com palavras, mas com a força da gravidade. Deus não precisa falar conosco com palavras – embora também possa fazê-lo; bastam-Lhe as Suas obras e a ação secreta do Espírito Santo nas nossas almas, movendo o nosso coração, inclinando a nossa sensibilidade ou iluminando a nossa mente para nos atrair docemente a Si.
Mesmo que inicialmente não tenhamos consciência de nada disso, com o passar do tempo, distinguiremos os efeitos da ação do Senhor em nós: talvez tenhamos nos tornado mais pacientes, ou mais compreensivos, ou trabalharemos melhor, ou valorizemos mais a amizade, enfim, amaremos a Deus cada vez mais.
Referências:
PEREIRA, Paulo. Como saber se é realmente Deus que está falando comigo? Canção Nova. Cachoeira Paulista, 2022. Disponível em: <https://formacao.cancaonova.com/espiritualidade/vida-de-oracao/como-saber-se-e-realmente-deus-que-esta-falando-comigo/>. Acesso em: 17 nov. 2022.
BRAJE, José. Conhecê-Lo e conhecer-se (5): Como Deus fala conosco. OpusDei. Brasil, 2020. Disponível em: <https://opusdei.org/pt-br/article/conhece-lo-e-conhecer-se-5-como-deus-fala-conosco/>. Acesso em: 17 nov. 2022.
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Edição típica Vaticana, Loyola, 2000.